“O único ponto positivo do programa apresentado pelo Governo é ter-nos motivado a estar aqui, a discutir este tema fundamental”. A afirmação proferida durante o período de intervenção do público sintetiza o sentimento geral entre a assistência da sessão do “Conversas à Porto”, dedicada à problemática da Habitação. O auditório da Fundação Dr. António Cupertino de Miranda foi pequeno para acolher as mais de duas centenas de pessoas que fizeram questão de participar na ação organizada pelo Porto, o Nosso Movimento.
O desacordo com a forma como foi preparado e apresentado o programa do Governo foi unânime entre a assistência e os membros do painel. “O Estado, ao posicionar-se com este conjunto de medidas mais estatizantes e centralistas, parece estar a ser demasiado voluntarista ao querer assumir praticamente todos os papéis, propondo-se a ser senhorio, fiador, credor, intermediário, cobrador, construtor… Ficamos seriamente preocupados especialmente pelo histórico de inoperância e insuficiente capacidade dos institutos públicos que agora são apresentados como a solução”, alertou logo no início o líder do movimento independente, Filipe Araújo.
José Mendes, Diretor da Fundação Mestre Casais, partilha da opinião e lembrou que “quando há Estado a mais, os projetos não avançam”. “É a estatização total da Habitação”, atirou ainda Manuel Reis Campos, Presidente da Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário e da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas. Mas, para além da forma, as críticas às medidas incluídas no documento apresentado pelo Governo são muitas. Pedro Baganha, Vereador dos Pelouros do Urbanismo e Espaço Público e da Habitação da autarquia do Porto, afirma que “algumas ideias parecem totalmente loucas e contaminam todo o pacote apresentado, como é o fim anunciado do alojamento local ou o arrendamento forçado”.
“Paternalismo centralista e ignorante”
Todos os oradores consideraram um erro a forma como o programa “Mais Habitação” aponta o alojamento local (AL) e os vistos gold como “culpados” do estado do setor. O economista Alberto Castro lembrou que uma grande parte do AL na cidade do Porto era constituído por “habitações novas ou fogos devolutos e que não estavam habitados”. Este setor veio, aliás, renovar as cidades: “os agentes económicos locais só dizem bem do AL”, avançou ainda o professor universitário, que em 2018 liderou um estudo sobre o tema para a Câmara do Porto.
A autarquia portuense “tem procurado atuar com base na realidade, nos números, algo que as políticas centralistas [do Governo] parecem ignorar”, disse ainda Alberto Castro, considerando o tom do “Mais habitação” de um “paternalismo centralista e ignorante”. “Criaram-se bodes expiatórios, como os vistos gold e o AL. Soa bem, mas não são o verdadeiro problema”, sentencia José Mendes, que foi também secretário de Estado no primeiro executivo de António Costa.
O problema no terreno é fácil de identificar: “existem poucas casas no mercado e as casas que existem são caras”. É possível construir mais? Manuel Reis Campos não tem dúvidas: “O setor tem capacidade. Em 2001 construímos 114 mil fogos. O Governo achou que tínhamos casas a mais e não acautelou esta situação. Em 2014 construíram-se apenas 6700 habitações e, mais recentemente, em 2021, foram cerca de 30 mil”. O dirigente considera, portanto, as medidas apresentadas pelo Governo “irrealistas” e incapazes de resolver o problema.
As autarquias como parte da solução
Durante o debate, os intervenientes apresentaram caminhos e algumas medidas que podem contribuir para a resolução de um problema que está a afetar milhares de portugueses. Manuel Reis Campos referiu-se à necessidade de alterações na política fiscal: “O Estado não pode continuar a apoiar-se nos impostos sobre a construção”. Por seu lado, Alberto Castro considera que deveria existir um maior incentivo à inovação no setor. “Uma das estratégias que correu bem em alguns países foi uma espécie de leasing, onde o valor da casa vai sendo abatido”, recorda.
Já José Mendes salienta o valor criado nas cidades por sistemas como o AL. “Fomentou um verdadeiro ecossistema, que cria emprego e paga impostos”. Nesta lista de medidas relevantes a adotar, não ficaram de fora os bons exemplos, como os programas lançados pela Câmara Municipal do Porto, nomeadamente o Porto Solidário e o Porto com Sentido. Desse ponto de vista, mais uma vez não se percebe que o Governo tenha ignorado a experiência de quase 80 anos do Município do Porto, enquanto “promotor de construção de habitação pública”.
A propósito, Pedro Baganha questiona-se sobre a razão pela qual as autarquias foram deixadas de fora na consulta, para agora o Governo querer entregar-lhes “as tarefas mais odiosas, como a fiscalização dos fogos devolutos”. “Estão a fazer dos municípios a ASAE da habitação”, acrescentou Rui Moreira, Presidente da Câmara Municipal do Porto, numa intervenção que encerrou o debate.